Literatura

Cerro catedral

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por Clarice Casado

Em julho de 2005, grávida de minha segunda filha, estive na Patagônia Argentina com minha família. Meu marido e meu filho de cinco anos. Estivemos lá por apenas alguns dias, mas foi uma experiência de uma vida. Motivo? Havia um magnetismo indescritível naquelas montanhas, naquele branco intenso, naquele lago escuro-brilhante, naquele sol que parecia nunca se pôr. Havia magia. Uma magia que de vez em quando me invade novamente. Há flashes daquele lugar em minha existência, constantemente.

Era inverno. Mas não foi um inverno frio para os habitantes locais. Um rapaz que deu uma aula de esqui aos meus “guris” comentou com meu marido que estava “Quente nesses dias”. Fiquei imaginando como seria o frio, se aquilo era quente… Fiquei imaginando como é estranho pensar que algumas pessoas podem sentir calor em um lugar onde outras morrem de frio. Nós, brasileiros, que estamos acostumados a árvores floridas e até a tempo quente em pleno inverno, obviamente achamos gelada a realmente gelada Bariloche. E isso que sou gaúcha, acostumada a frios mais intensos.

Nos pés dos montes com neve, em realidade era mais quente do que na pequena cidade. Explicação, rudemente falando: o sol reflete na neve e realmente quando se chega ao pé da montanha dá vontade de tirar um dos três casacos que se está vestindo. E é um sol, mas um sol como nunca vi igual em minha vida. É o nosso velho e bom sol, estrela luminosa do Sistema Solar (estrela mesmo? Acho que é isso…!), mas um sol intenso, grande, com mais raios que o normal, um Sol, que, poder-se-ia dizer que parecia mais perto de mim. Eu sentia aquele Sol me tocando. Uma sensação realmente peculiar. E demora muito, mas muito para pôr-se, em pleno inverno. Deitava-se aí pelas sete, sete e meia da noite. Uma coisa fantástica. Era de uma beleza solitária, beleza iluminada de astro-rei. Parecia abraçar a cidade, os habitantes, os visitantes, o lago de um azul-escuro intenso, as montanhas, a neve, tudo. Parecia dizer, “Venham, meus amigos, há lugar e calor para todos!”.

E havia um monte em especial, o mais famoso da cidade de San Carlos de Bariloche (diz-se Barilôtche, por favor, não vamos assassinar a língua espanhola só por uma raiva infundada que alguns brasileiros nutrem pelos argentinos!), esse monte, chamado Cerro Catedral, era o mais visitado, o mais “esquiado”, o mais bonito, enfim. Cerro significa justamente “monte” e Catedral, sinceramente, não saberia dizer se realmente significa “catedral” com o mesmo sentido do português. Prefiro pensar que sim. Catedral, um lugar sagrado, uma igreja. De religiosa nada tenho, mas me agrada pensar naquele lugar como uma igreja, um santuário, um lugar simplesmente sagrado. Sagrado no sentido de intocado, belo, puro. Porque era essa exatamente a sensação que me transmitia aquele monte, aquela neve, aquele Sol, aquela cidade, aquela região da Argentina. Sagrada. E ao mesmo tempo profana, terrivelmente profana, com aquelas pessoas esquiando e marcando duramente com seus esquis a neve branca, pura, límpida. Sagrada.

Não pude esquiar. Não pude provar o gosto do profano. Estava grávida de cinco meses, o que me impedia automaticamente de profanar qualquer coisa. Havia um bebê em mim, afinal. Lembro-me do dia em que meu marido e meu filho subiram pela primeira vez o monte Catedral para terem sua aula de esqui. Fiquei triste por não poder acompanhá-los. Foi a primeira vez que nos encontramos impedidos de nos divertir juntos. Lembro-me deles vestidos, bonitinhos com gorros e luvas e esquis. Foram se afastando rumo ao ski-lift (cadeirinha que anda suspensa em cabos do pé ao topo da montanha ou monte), enquanto eu fiquei no pé, sentada olhando para o monte. As cadeirinhas iam e vinham, numa dança bem bonita. Fiquei com o coração apertado, pensando: será que estarão bem? Chegarão lá em cima ilesos? Cairão dos esquis? Pânico. Eu não podia controlar aquela atividade deles. Não podia nem ver. Mas pude sentir pela primeira vez que tudo seria diferente a partir daquele momento. Tive consciência plena de que nossa família crescia e, que talvez tivéssemos nossas atividades restritas por algum tempo, até o bebê ter uns dois ou três anos, quando então poderia participar mais ativamente dos passeios em família. E resolvi aceitar tudo aquilo. Fiquei até muito feliz.

Deixei a cidade alguns dias depois, com a estranha sensação de que deveria voltar, e de que voltaria. Talvez com minha família toda, certamente com a família toda, com minha filha já maiorzinha, e todos nós poderíamos subir o monte e esquiar, juntos. Mas tive ainda outra sensação: uma sensação que me percorreu o corpo e tomou-me a alma. Tive a certeza de que, quando morresse, iria para lá. Se tivermos mesmo uma alma, e se essa alma voa para algum lugar quando morremos, é para lá que quero voar. Eu, minha alma, é para lá que quero ir. Quero ficar em Bariloche por toda a eternidade, sentindo aquele sol e vendo aquele branco infinito, e lembrando para sempre, com ternura, dos dias em que estivemos lá.

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